Em Estudo Inédito, Pesquisadores do Laboratório de NeuroImagem em Psiquiatria (LIM 21) Identificam que Maconha Não Ajuda no Tratamento de Dependentes de Cocaína

17 de março de 2020

Em Seminário Científico dos Laboratórios de Investigação Médica (LIMs), o pesquisador Hercilio Pereira de Oliveira Junior explicou que disfunções executivas e uso precoce de cocaína e maconha aumentam as chances de recaídas dos pacientes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Crédito: Marília Carrera / Comunicação LIMs

Na quarta–feira (11/03), os Laboratórios de Investigação Médica (LIMs) promoveram o seminário científico Efeitos Diferenciais de Cocaína X Cocaína + Maconha sobre o Funcionamento Executivo e Abstinência: Um Estudo de Segmento de Seis Meses, com o pesquisador do Laboratório de NeuroImagem em Psiquiatria (LIM 21) Hercilio Pereira de Oliveira Junior. “Observamos uma tendência de normalização do uso da maconha no Brasil e em outros países do mundo, com legislações cada vez mais flexíveis em relação ao uso da maconha tanto para fins medicinais quanto para fins recreativos”, afirmou Oliveira.

Na terça–feira (10/03), entrou em vigor a resolução de número 327, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que estabelece os requisitos necessários para a regulamentação de produtos à base de Cannabis para fins medicinais no Brasil. Entretanto, a proposta de regulamentação do plantio de Cannabis, ainda que para uso terapêutico no país, foi rejeitada pela Diretoria Colegiada (Dicol). “O novo marco regulatório cria uma nova classe de produtos sujeito à vigilância sanitária: os produtos à base de Cannabis, termo que vem sendo utilizado internacionalmente com autorizações emanadas de diferentes autoridades sanitárias do mundo. A [Resolução da Diretoria Colegiada] RDC aprovada nesta terça–feira dispõe sobre os procedimentos para a concessão de uma Autorização Sanitária para a fabricação e a importação desses produtos, bem como estabelece requisitos para comercialização, prescrição, dispensação, monitoramento e fiscalização de produtos de Cannabis para fins medicinais”, escreveu a Anvisa, após a aprovação do novo regulamento, em 3 de dezembro de 2019.

O 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), aponta que a maconha é a droga ilícita mais consumida no Brasil, seguida da cocaína. No caso de substâncias psicoativas, como a maconha e a cocaína, o aumento da disponibilidade de dopamina no núcleo accumbens (NAc), região do cérebro que está associada à recompensa, é responsável por causar dependência.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Consumo de substâncias ilícitas entre pessoas de 12 a 65 anos na vida, nos últimos 12 meses e nos últimos 30 dias, por tipo de substância, no Brasil. Crédito: 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

“Esta via final comum é o que faz alguém se tornar dependente de alguma substância, seja álcool, cocaína, maconha, tabaco, entre outras drogas, mas existem também vias alternativas. Por exemplo, a maconha é uma substância que, por meio da ação de receptores canabinoides, desencadeia a liberação de dopamina, e a cocaína é uma substância que, por meio da inibição da captura de dopamina, também aumenta a concentração de dopamina”, explicou Oliveira. “Os sintomas da abstinência de cocaína incluem agitação psicomotora, agressividade, ansiedade, insônia e irritabilidade. Então, quando usuários de cocaína se sentem hiperestimulados, eles tendem a consumir substâncias com ação relaxante, como a maconha”, acrescentou ele. “Os usuários de cocaína, principalmente de crack, frequentemente usam a maconha como alternativa de tratamento. É comum que os pacientes digam que abrirão mão de usar cocaína, mas que usarão maconha por um tempo. Os pacientes dizem que a maconha diminui os efeitos da abstinência de cocaína, fazendo com que eles se sintam mais relaxados”. Derivados da planta Erythroxylum coca, a cocaína e o crack possuem o mesmo princípio ativo. Entretanto, a cocaína se apresenta na forma de pó e o crack se apresenta na forma de pedra.

Entre os estudos citados por especialistas para defender a política de Redução de Danos está Therapeutic Use of Cannabis by Crack Addicts in Brazil, publicado em 1999 no Journal of Psychoactive Drugs. Depois de 09 meses de acompanhamento por um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), mais da metade dos 26 pacientes dependentes de cocaína relataram melhoras nos efeitos da abstinência de cocaína em função do uso da maconha. No entanto, o trabalho apresenta falhas metodológicas, como amostragem pequena e ausência de grupo de controle. “Embora pequeno e não controlado, este estudo foi uma das referências da política de Redução de Danos, isto é, supostamente usuários de cocaína deveriam usar maconha para não usar outras drogas mais pesadas”, pontuou Oliveira. De acordo com a International Harm Reduction Association (IHRA), Redução de Danos consiste no conjunto de políticas para reduzir os danos decorrentes do uso de drogas entre pessoas que não podem ou não querem parar de usar substâncias lícitas ou ilícitas. “Por definição, redução de danos foca na prevenção aos danos, ao invés da prevenção do uso de drogas; bem como foca em pessoas que seguem usando drogas”, escreveu a organização não governamental (ONG), no documento O que é Redução de Danos?

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Novos Horizontes para o Tratamento da Dependência

No estudo Distinct Effects of Cocaine and Cocaine + Cannabis on Neurocognitive Functioning and Abstinence: A Six-Month Follow-Up Study, publicado em 2019 na revista científica Drug and Alcohol Dependence, Hercilio Pereira de Oliveira Junior e outros pesquisadores do Laboratório de NeuroImagem em Psiquiatria (LIM 21) buscaram entender se a maconha melhora ou piora o prognóstico de dependentes de cocaína “Estudos preliminares indicavam a possiblidade de melhor prognóstico, mas não acreditávamos nisto porque não havia sustentação do ponto de vista metodológico. Na verdade, esperávamos que os usuários de cocaína e maconha apresentassem pior desempenho das funções executivas em comparação com os usuários de cocaína e o grupo de controle e fossem mais propensos a recaídas”, apontou Oliveira.

Os pesquisadores do LIM 21 avaliaram 105 pacientes do Hospital das Clínicas, sendo 63 dependentes de cocaína que usavam maconha, 24 dependentes de cocaína que não usavam maconha e 36 integrantes do grupo de controle. De acordo com critérios estabelecidos pela literatura médica, os dependentes de cocaína que usaram maconha mais de 50 vezes na vida foram classificados como usuários concomitantes de maconha. Os pacientes realizaram exames de urina, para atestar se eles faziam uso de cocaína, e testes neuropsicológicos, para avaliar as suas funções executivas. Depois do tratamento no Hospital das Clínicas, os participantes foram contatados por telefone um mês, três meses e seis meses após a alta.

Em comparação com o grupo de controle, tanto os dependentes de cocaína que usavam maconha quanto os dependentes de cocaína que não usavam maconha desempenharam pior em todos os testes neuropsicológicos. Em comparação de um com outro, os dependentes de cocaína que usavam maconha desempenharam pior nos testes de Stroop e Wisconsin Perdas de Set, que avaliam controle inibitório e atenção sustentada, respectivamente, enquanto os dependentes de cocaína que não usavam maconha desempenharam pior no teste Wisconsin Erros Perseverativos, que avalia avalia flexibilidade cognitiva.

“Quando comparados com o grupo de controle, os usuários de cocaína e Cannabis e de cocaína apresentaram comprometimento cognitivo, com prejuízos para a atenção sustentada, o controle inibitório, a flexibilidade cognitiva, a memória de trabalho, a tomada de decisão e a velocidade de processamento. Quando comparados entre si, os usuários de cocaína e Cannabis apresentaram comprometimento mais significativo em funções relacionadas a atenção sustentada, ao controle inibitório e a velocidade de processamento. Por outro lado, os usuário de cocaína apresentam comprometimento mais significativo em funções relacionadas à flexibilidade cognitiva”, destacou Oliveira. “A nossa descoberta de que os usuários de cocaína e Cannabis tiveram pior desempenho em atenção sustentada, controle inibitório e velocidade de processamento reforça o efeito negativo adicional da maconha sobre a cognição. Então, usar maconha até pode proporcionar uma sensação de relaxamento no início, mas piora a cognição e torna os usuários de cocaína mais propensos a recaídas com o passar do tempo”, ressaltou ele.

Os usuários de cocaína e maconha começaram a usar cocaína aos 17,7 anos e maconha aos 15 anos e os usuários de cocaína começaram a usar cocaína aos 18,4 anos. Os pesquisadores do LIM 21 identificaram que as disfunções executivas e o uso precoce de cocaína aumentavam as chances de recaídas ao longo do tratamento. “O uso concomitante de cocaína e Cannabis não aumentou a retenção ao tratamento ou diminuiu as recaídas, contrariando os estudos prévios da década de 1990”, salientou Oliveira. “Em termos de recaídas, não houve diferença significativa entre usuários de cocaína e Cannabis e usuários de cocaína, o que indica que a maconha não trouxe benefícios passado o tratamento. Pelo contrário, o uso precoce de maconha foi outra variável preditora de recaída”, complementou ele.

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Canabidiol

De acordo com Hercilio Pereira de Oliveira Junior, o estudo do Laboratório de NeuroImagem em Psiquiatria (LIM 21) enfocou a maconha, diferentes de outros trabalhos realizados no Brasil e em outros países que enfocam o canabidiol, um dos componentes da Cannabis sativa. “Estamos em uma cruzada para uma disponibilidade maior do canabidiol no Brasil Há pesquisadores que levantam a possibilidade de o canabidiol ser bastante útil, por exemplo, no tratamento de sintomas de ansiedade. O nosso objetivo foi estudar a maconha, mas o estudo do canabidiol continua sendo importante. Tanto para o debate em torno do canabidiol quanto para o debate em torno da maconha, as evidências científicas são imprescindíveis”, disse Oliveira. “No nosso caso, não encontramos evidências científicas de que a maconha melhora o prognóstico de dependentes de cocaína nem a médio prazo. Pelo contrário, descobrimos que disfunções executivas combinadas com o uso precoce de cocaína e de maconha são preditivas de recaídas. Embora o tema seja urgente, não podemos nos confundir e indicar condutas médicas sem bases sólidas”, concluiu ele.

Por Marília Carrera / Comunicação LIMs


Desenvolvido e mantido pela Disciplina de Telemedicina do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP